Acreditando que o capital humano é uma das dimensões fundamentais do desenvolvimento local, pois justamente em torno dele as condições socioambientais e econômicas podem ser transformadas em benefício do bem comum, ao mesmo tempo que resguarda os princípios de sustentabilidade, a Fundação Tide Setubal atua para o desenvolvimento humano com um sistema de ações que promove uma instância de participação e diálogos de significados na área da cultura, visando construir uma agenda que valorize os costumes, as práticas culturais e a memória da comunidade como patrimônio cultural, material e imaterial, de São Miguel Paulista e ponto de partida para estabelecer diálogos interculturais.
As culturas tradicionais, as novas tecnologias, o passado, o contemporâneo, o campo e a cidade, o tempo e o espaço da cultura no dia a dia da periferia na metrópole configuram os elementos que substanciam uma programação cultural que valoriza os saberes locais em sintonia com os direitos humanos e a sustentabilidade ambiental.
Foi com esse olhar e a escuta junto à comunidade de São Miguel Paulista, e em especial junto aos moradores do Jardim São Vicente, que foram criadas as ações de formação cultural, bem como a programação de cultura, que hoje conta com três importantes eventos para a região e para a cidade: Encontro de Cultura Hip Hop, Encontro da Cultura Caipira/Festa Julina e Festival do Livro e da Literatura.
Tendo os festejos de junho como um momento propício às manifestações tradicionais da cultura popular, uma vez que estabelecem uma ligação entre as tradições nordestinas e paulistas, corriqueiramente o Encontro de Cultura Caipira ocorre neste mês festivo, porém, em 2014, por conta da Copa do Mundo, a Fundação optou por realizá-lo em julho, permitindo um melhor aproveitamento pelos participantes.
Já conhecido como um marco no calendário de alguns grupos de cultura tradicionais de São Paulo, o Encontro tem se transformado em uma referência de oportunidade para comunidades e jovens urbanos entrarem em contato, muitas vezes pela primeira vez, com manifestações tradicionais ainda existentes na Grande São Paulo e também no interior paulista, assim como conhecerem manifestações dos sertões do Brasil, sobretudo do Nordeste, origem de grande parte dos moradores da região.
A festa é construída com a participação da comunidade que frequenta o CDC Tide Setubal, desde sua idealização, pensada para criar um ambiente de sociabilidade junto aos moradores do entorno, até os dias hoje, quando o envolvimento comunitário tem exercido um importante papel no resgate de pratos típicos e releituras atuais, feitos de forma artesanal, em consonância com os objetivos de melhorar os hábitos alimentares a partir de habilidades revisitadas e da escolha de alimentos não processados.
Em sua nona edição, o Encontro continua a estabelecer um profícuo diálogo entre campo e cidade, pois reflete suas formas e visões de mundo, as relações interculturais e de interdependência. A culinária, a dança, a música, a poesia, o artesanato, suas histórias, suas lutas, seus causos, enfim, sua arte e seus costumes.
Em 2014, o Encontro trouxe o tema Chegadas e Partidas e buscou refletir sobre a luta pela sobrevivência marcada pela necessidade de se deslocar em busca de melhores condições de vida. Chegadas e partidas marcam a vida dos moradores de São Miguel Paulista, uma vez que a maioria deles passou pela experiência da migração do sertão para a Grande São Paulo, do interior para as metrópoles.
Nessa viagem no tempo, no espaço e na cultura, aprendem a lidar com o cotidiano da cidade, mas, ao mesmo tempo, preservam na memória as experiências de origem que podem reviver na festa caipira. Portanto, a programação desenvolvida para o encontro em 2014, assim como em anos anteriores, procurou abrir janelas que permitiram um olhar para nossa memória em diálogo com as questões e os modos atuais, e buscou, com isso, substanciar o sentido de pertencimento às nossas matrizes culturais para o fortalecimento de identidades.
Além da articulação com a comunidade, a Fundação também constituiu parcerias com outros atores do território, visando ampliar o impacto das reflexões propostas, estendendo suas atividades em ações formativas. Um dos parceiros foi a EMEF Pedro Almirante de Frontin, onde ocorreu uma pré-programação com uma série de oficinas culturais planejadas em conjunto com a coordenação pedagógica.
A estratégia para mobilizar os alunos partiu da análise das atividades e habilidades já desenvolvidas na unidade de ensino, de modo que a existência de um projeto de musicalização infantojuvenil a partir de fanfarra suscitou a possibilidade de implantar uma oficina de percussão de maracatu e samba caipira, introduzindo ritmos e instrumentos tradicionais, contextualizando suas origens. Partindo da característica existente nas manifestações tradicionais que se configuram como práticas em multilinguagens artísticas, também foram articuladas, com as oficinas de música, oficinas de dança do maracatu e oficina de construção de bonecos.
Tal ação formativa permitiu a crianças e jovens não apenas conhecerem um pouco de nossa cultura, ampliando seu repertório, mas, também, protagonizarem uma intervenção, recriando-a por meio de elementos originais. O trabalho foi apresentado na escola e em cortejo por ruas do bairro, com a presença de pais e professores, e adentrou o CDC Tide Setubal, promovendo uma segunda apresentação para o público do 8º Encontro de Cultura Caipira.
Em outras ações em parceria com a comunidade, a Fundação desenvolveu com adolescentes e jovens do Jardim Lapenna uma quadrilha julina que foi denominada Jogo da Vida, cujo roteiro dramático, coreografia e encenação foram criados de forma colaborativa pelos participantes, incluídos os funcionários e a comunidade.
A comunidade teve a oportunidade de presenciar o trabalho de diversos grupos tradicionais e grupos de recriadores, entre eles temos: Trio Rastapé Flor de Muçambê, Sucatas Ambulantes, Maracatu Porto de Luanda, Viola a Três, Cordão de Bichos de Tatuí, Orquestra de Viola de Piracicaba, Banda Sinfônica de Embu das Artes, Jongo Mistura de Raça de São José dos Campos, Grupo Jabuticaqui, Cururu de Sorocaba, Catira Botas de Ouro.
O Encontro de Cultura Hip Hop, que também chegou à sua oitava edição em 2014, tem permitido uma articulação de trocas entre artistas da cidade de São Paulo e proporcionado a realização de Intercâmbios com outros países, como aconteceu no ano do Brasil na França e também entre São Paulo e Berlim nesta edição.
Pensado e realizado com a participação de coletivos ligados ao movimento hip hop da região de São Miguel Paulista, o Encontro se transformou não apenas em uma mostra artística em que se podem verificar as transformações ao longo da trajetória dos atores locais, mas também em um momento de reflexão e redimensionamento das estratégias de ação e intervenção cultural junto às comunidades nas quais os grupos atuam. As contribuições desses atores têm, de forma progressiva, qualificado o evento, pois emprestam a ele sua capilaridade territorial e seus modos e fazeres, potencializando em rede os impactos de suas ações. Tal percepção tem contribuído para que a construção do Encontro busque uma convergência temática para apresentar os olhares do movimento hip hop acerca de assuntos e abordagens que lhe são significativos diante dos contextos vividos local e globalmente.
É com este olhar que, em 2014, o Encontro ocupou vários espaços e ruas em São Miguel Paulista, articulando com os coletivos e instituições como Marginaliaria, Arte e Cultura na Kebrada, Causa P, Biblioteca Raimundo de Menezes, EE Dom Pedro I, EMEF Arquiteto Luis Saia e Subprefeitura de São Miguel Paulista. Além dos elementos tradicionais, os espaços receberam saraus e conversas com autores na biblioteca do bairro, além de oficinas de grafite com alunos do Galpão de Cultura e Cidadania, que puderam promover suas primeiras intervenções no espaço urbano e interagir com grafiteiros profissionais numa expedição por um circuito de trabalhos e atividades em São Miguel. O Encontro ainda contou com uma pré-programação realizada em parceria com a EMEF Almirante Pedro de Frontin, por meio de exibições do filme Cidade Cinza, seguido de debates sobre o direito à cidade, com a participação de 400 alunos. O evento ainda contou com uma exibição com a presença de Sergio Franco, que promoveu um debate sobre o filme. Fizeram apresentações de rap os seguintes grupos e MCs: Dorys de Oliveira, Primeiramente, Dragões de Comodo e Rapadura, com o apoio dos DJs Elvis e Negrito.
Incubação e captação de recursos – Os encontros realizados com artistas, grupos e coletivos locais para a construção da programação cultural e também pelo Fórum de Cultura de São Miguel permitiram não só criar uma identidade para os eventos realizados, mas também identificar demandas desses atores, prospectar reivindicações históricas de equipamentos para a região e, sobretudo, reafirmar a necessidade crônica de fomento para a produção e formação cultural local em todas as linguagens artísticas.
Entendidas pelos ativistas culturais como um ponto vital para a sobrevivência e sustentabilidade dos coletivos na periferia, as políticas de fomento traduzidas em editais como o VAI, Pontos de Cultura, Agentes de Cultura, entre outras, são extremamente importantes, porém, insuficientes, dado o rodízio que precisam realizar, entre grupos e regiões. Nesse sentido, a mobilização realizada junto ao Fórum de Cultura, que tem a Fundação Tide Setubal como um dos atores, e grupos locais buscou elencar como prioridade a necessidade urgente do aumento do orçamento na área da cultura e sua descentralização, efetivar o Fundo Municipal de Cultura, implantar Pontos de Cultura respeitando a proporcionalidade populacional dos distritos, implantação de uma Agência de Desenvolvimento Sustentável, entre outras demandas. Essas demandas foram relatadas em documento produzido e entregue aos agentes públicos.
Além das demandas em diálogo direto com as necessidades, os encontros também suscitaram sugestões e propostas de arranjos locais que possam estabelecer mecanismos de apoio ao financiamento, aproveitando recursos e potências do território. Para tanto, a Fundação Tide Setubal, após estudar as possibilidades de formatos e meios que permitam ampliar o fluxo de recursos para os atores locais, propôs para o território duas alternativas que contribuem para que os grupos possam captar recursos e financiar seus projetos: Módulo de Elaboração de Projetos Culturais e Edital Territorial de Cultura.
Módulo de Elaboração de Projetos Culturais – A Incubadora de Elaboração de Projetos, que surge a partir do Módulo de Elaboração de Projetos Culturais, tem auxiliado grupos e coletivos artísticos na leitura e interpretação de editais públicos de fomento à criação artística, tais como: VAI, ProAC, Fomento ao Teatro, Miriam Muniz (Funarte), entre outros. Bem como tem desenvolvido metodologia de trabalho que permite aos grupos escreverem seus próprios projetos - e inscrevê-los nesses editais.
Esse espaço tem permitido a troca de experiências entre os grupos e artistas locais e, sobretudo, um processo de criação e escrita de projetos de forma colaborativa. Também tem oferecido aos atores locais possibilidade de planejarem seus projetos de intervenção numa ação conjunta e estratégica, potencializando suas ações no território.
A incubadora realiza seus encontros desde 2013, no primeiro momento apoiando alguns grupos de teatro, formados a partir das oficinas do Arteculturação, na elaboração de projetos para o programa VAI. Já em 2014, contou com a participação do Movimento Aliança na Praça (coletivo de poetas Hospício Cultural), Grupo de Teatro DioTespissio, Grupo de Teatro Marmottart, Núcleo Flyer Circular Conta a Black Music, Lika Rosa com o projeto Festival 100 Intermediário e Bruna Oliveira com o projeto Comida de Pobre?, entre outros. Dois projetos foram aprovados no ProAC, Hospício Cultural Intervém: da praça às escolas públicas (ProAC Saraus Culturais) e DioTespissio Conta São Miguel Paulista (Primeiras Obras Teatro).
A captação de recursos é um desafio para o fortalecimento das instituições e coletivos; nesse sentido, nasceu dos debates e dos encontros a proposta da criação de um edital territorial num arranjo intersetorial tríplice, que envolve a Subprefeitura de São Miguel, Fórum de Cultura e empresas locais apoiadoras. Num primeiro momento, a proposta foi bem recebida pelos agentes culturais integrantes do Fórum, porém, cabe a essa instância participativa a formulação de uma estratégia para prosseguir na definição de um desenho detalhado junto aos outros atores setoriais envolvidos.
VIII Encontro de Cultura Caipira relembra as origens e emociona moradores da região